quarta-feira, 19 de agosto de 2015


Mais um fragmento do romance histórico publicado em janeiro deste ano pela Editora Perse.
Quem gostar e se interessar em adquiri-lo, basta entrar no site:
www.perse.com.br


 DITADURA DE CORAÇÕES.
- Fragmento III -

 Uma novidade atingiria todo o país, seria a primeira conquista concreta da Revolução Constitucionalista, dia 03 de Março haveria a primeira eleição para Assembleia Nacional Constituinte, onde mulheres votaram no Brasil em geral e o voto tornou-se secreto também em todo o país. Desta vez a felicidade, a sensação de liberdade de expressão e domínio das próprias decisões e direitos eram unânimes. No Jornal onde FelipE trabalhava em Curitiba havia um clima de bem- estar generalizado.
- Até que enfim essa revolução serviu para alguma coisa.
Resmungou um dos funcionários do Jornal retirando seu terno e descansando-o na cadeira.
- Quem decide o país é Vargas, não aqueles revolucionários, eles estão mortos, o governo decidiu por ele mesmo pela eleição, não tem nada com eles.
Respondeu Leonardo getulista fiel.
- Será que realmente alguma coisa vai mudar daqui para frente?   
 Enquanto se discutia entre 
os funcionários a última 
notícia, entre uma intensa névoa causada pelos charutos e cigarros misturados no perfume agradável e sedutor do café recém-coado, Felipe apenas batia forte a tecla da máquina de escrever. 

Pensava fixamente na ideia de partir no mês de Abril 

para São Paulo, e saber finalmente se Anice haveria ou não 

de estudar naquele estado. Antes mesmo de o calendário 

acusar a virada do mês, suas malas estavam prontas. A 

governanta se dirigiu a mesa do café da manhã e vendo-o ao 

lado da esposa educadamente pediu licença:

- Senhor Denis.
- Sim Áurea?
- Deseja que eu prepare suas malas?
- Eu mesmo as preparei hoje bem cedo, obrigada.   
Num olhar de espanto e ironia, Camila comentou:
- Que interessante... Fazendo suas malas, deve estar ansioso pelo trabalho em São Paulo...
- Estou sim, bastante.
- E por que seria? O Jornal tem se tornado um ambiente tão agradável querido?
- Bastante interessante. Notícias interessantes, local interessante, amigos interessantes, enfim... Interessante!
- Está sendo irônico.

-Assim como você, querida. Agora me dê licença, estou atrasado.     – empurrou a cadeira de si avidamente, e irritado saiu dali.
Camila parecia um vulcão em erupção, seu relacionamento com Felipe era simplesmente insuportável, mas parecia que ela o desejava mesmo assim, não pretendendo perde-lo de vista.

Dias se passaram, o trabalho era intenso para o Jornal e ainda havia o fator adicional de ter se envolvido à AIB, o que a princípio pareceu-lhe inofensivo, mas a associação na verdade era inflamada por ideais passionais tão quanto as outras. E lá estava Felipe novamente diante de passeatas, comícios e confrontos. Muito se falava em nazi-fascismo! A cada dia os comentários preocupavam e incomodavam Felipe intensamente. Impaciente friccionava o couro cabeludo enquanto se movia ansiosamente, a notícia que ele mesmo publicava o estava deixando sem controle. Joel bateu na porta de sua sala.
- Entre.
- Tem um momento?
- Tem noção de em que lamaçal eu entrei? Olhe para isso! Esse maluco do Plínio Salgado agora manda que seus adeptos usem roupas verdes com a letra grega sigma como símbolo da AIB, ainda tem um jargão em tupi pra gritar enquanto eu tomo meu banho matinal.
- Sério? E como é?  - riu Joel da desgraça alheia.
- Anauê!
- Anauê? E o que significa isso?!
- Eu ainda não sei, e não ando muito preocupado com isso, o que me preocupa é que muitos grupos contra a AIB já nos acusam de fascistas.
- Com que argumento?
- Com este argumento.    – entregou-lhe um jornal do Rio Grande do Sul.
- Eles dividem sede com Partido Nazista?!  - exclamou Joel enquanto lia rapidamente o jornal. 
- Exatamente.   – respirou profundamente, e após retomar as forças disse olhando o amigo diante dele:
- Não sei como fui parar aqui Joel, era para estarmos do outro lado. Como acabei um fascista?
- Ei, não seja extremo, você sempre aumenta o problema. Não é bem assim, é o que parece, mas você é um infiltrado.
- Não, eu era um infiltrado, hoje sou um deles, é bem diferente. Às vezes penso em besteira sabia?
- Do que está falando? Que tipo de besteira? Vai dar uma de Santos Dummont colega? Larga mão de ser moleque e termina o seu serviço chefinho, que eu vou terminar o meu. E vou descobrir o que significa Anauê. Seu Fascista!   - riu trancando a porta.
Mas Felipe não estava para muitas brincadeiras, realmente aquela notícia o preocupava, e, sobretudo, o incomodava. Saiu pela tarde resolver assuntos do Jornal, duas horas após sua ausência, alguém batia na porta transparente da saleta de Leonardo que dividia com mais dois funcionários.  O rapaz levantou-se ao ver que se tratava de uma bela jovem ruiva, e apressou-se a atendê-la.
- Pois não senhorita?
- Boa tarde. Eu me chamo Anice Arruda Carneiro.
- Prazer, Leonardo Antunes Silva.
- Prazer. Como ia dizendo, estou à procura de um jornalista...
- Há vários aqui, eu mesmo serei um em breve.   – interrompeu sorridente.
- Estou em busca de um específico na verdade, seu nome é Denis Freitas.
- Ah sim! O chefe do Jornal.
- Sim.  
- Que pena, ele saiu, e não disse quando voltará na realidade nem mesmo se voltará.
- Posso deixar esse envelope com você? Entregaria a ele por mim?
- Sim claro, com certeza.  
- Apenas isso, não esqueça por gentileza, é muito importante.
- De maneira alguma.  
Encantado Leonardo seguia com o olhar o caminhar de Anice até que ela desapareceu na esquina do saguão, e quando voltou-se para trás deu de frente ao peito coberto com  o terno cinza de sempre de Joel, cheirando a charuto.
- Que susto Joel!
- O que ela entregou para você?
- É para o chefe.
- Eu vou me encontrar com ele e me disse exatamente para levar esta carta, está me esperando. Dá logo isso.   
Leonardo sequer hesitou, entregou e voltou ao seu canto de trabalho. Joel saiu do recinto onde eles se encontravam e enquanto descia a escadaria do prédio abriu a carta. Exceto as palavras de amor e carinho, Anice trazia o endereço de onde se encontrava. Joel transformou aquele envelope em mil pedaços, guardou-os no bolso do paletó e seguiu ao endereço.
  Então dias se passaram. A noite de certa sexta-feira, no apartamento que seu pai lhe preparara em São Paulo, com todo luxo, até além de o necessário, Anice estava só. Enquanto escovava seus longos cabelos e apreciava a lua, se perguntava por que Felipe não havia procurado por ela, conforme a carta lhe orientava. Não distante dali, estava Felipe, também em uma janela, do quarto do seu apartamento em São Paulo se questionando se Anice conseguiria ou não vir a estudar na cidade, ou se teriam que pensar em outro plano, ainda se nenhum plano seria ideal para eles. E assim, confusos dormiram.
  Na manhã seguinte, o carro de Felipe estacionou em frente ao Jornal, como de costume ele retirou um cigarro acendeu-o e tomou seu chapéu para descer. Ao abrir a porta além da poça d´agua avistou os pés delicados a sua frente, e os conheciam muito bem...

- Você veio!
- Por que não foi me ver ontem Felipe?  
Ela tremia diante da garoa fina e fria que caía pela manhã, e a imagem inofensiva e frágil o fez desmontar em si mesmo. Puxou-a para dentro do carro e saiu de frente do prédio.
- Quando chegou?
- Na verdade há três dias, mas meus pais foram embora há dois, ontem deixei minha carta com Leonardo, seu funcionário.
- Ele é um esquecido, o perdoe. Mas terei uma conversa com ele.
- Esperei você até a madrugada!
- Não posso acreditar que veio para São Paulo! Então se instalou aqui? Mostre-me o endereço.
- Claro.  – respondeu beijando-o e abraçando-o como se não o visse há anos.
Sob o teto do apartamento da jovem, se perdiam numa cama estreita de menina solteira. E em meio aos cobertores pesados e roupas dela, brigavam entre eles por espaço e atenção pelas mãos, pelos braços, por eles...

- Não consigo trabalhar Anice.
- Nem pense nisso Felipe, não podem desconfiar de nós!
- Tudo parece ser sempre tão difícil  não é?
- Não me venha com lamúrias de novo, está tudo maravilhoso, você está aqui, eu estou livre pra ser só sua, quando e quanto você quiser, e isso é o paraíso de tudo o que pudemos imaginar.
  Então o jornalista pacificando seu coração mais uma vez, como sempre lhe ocorria ao se unir aquela jovem, consentiu a suas palavras. Colaram-se as mãos, e sentindo como se suas energias fossem absorvidas um no outro, ele disse:
- Eu quero me casar com você um dia Anice, ter um filho, viver numa casa simples, com um cachorro e um gato. E quero vê-la de roupas leves me aguardando para jantar. Eu quero tudo diferente do que vivemos ontem e hoje, pois riqueza e luxo, nada disso fez sentido. 
Naquele instante em especial, ela deteve as lágrimas, pois não encontrava palavras para exteriorizar o quanto almejava pelos mesmos sonhos. Então preferiu levar suas mãos aos cabelos dele e trazê-lo para ela pacificamente em silêncio. Naqueles dias, o silêncio era a maior prova de amor de muitos.
  O ano de 1933 não trouxe muito tumulto, diferente do 

anterior tudo se manteve de certa forma linear, 

enquanto o sonho de Felipe e Anice era cultivado e florescia  

a cada dia entre encontros secretos no

 apartamento da jovem, olhos distantes observavam e 

maquinavam contra seus passos...