Mais um fragmento do romance histórico publicado em janeiro deste ano pela Editora Perse.
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DITADURA DE CORAÇÕES.
- Fragmento III -
Uma novidade atingiria todo o país, seria a
primeira conquista concreta da Revolução Constitucionalista, dia 03 de Março
haveria a primeira eleição para Assembleia Nacional Constituinte, onde mulheres
votaram no Brasil em geral e o voto tornou-se secreto também em todo o país.
Desta vez a felicidade, a sensação de liberdade de expressão e domínio das
próprias decisões e direitos eram unânimes. No Jornal onde FelipE trabalhava em
Curitiba havia um clima de bem- estar generalizado.
- Até que
enfim essa revolução serviu para alguma coisa.
Resmungou
um dos funcionários do Jornal retirando seu terno e descansando-o na cadeira.
- Quem
decide o país é Vargas, não aqueles revolucionários, eles estão mortos, o
governo decidiu por ele mesmo pela eleição, não tem nada com eles.
Respondeu
Leonardo getulista fiel.
- Será
que realmente alguma coisa vai mudar daqui para frente?
Enquanto se discutia entre
os funcionários a
última
notícia, entre uma intensa névoa causada pelos charutos e cigarros misturados no perfume agradável e sedutor do café recém-coado, Felipe apenas
batia forte a tecla da máquina de escrever.
Pensava fixamente na ideia de
partir no mês de Abril
para São Paulo, e saber finalmente se Anice haveria ou
não
de estudar naquele estado. Antes mesmo de o calendário
acusar a virada do
mês, suas malas estavam prontas. A
governanta se dirigiu a mesa do café da
manhã e vendo-o ao
lado da esposa educadamente pediu licença:
- Senhor
Denis.
- Sim
Áurea?
- Deseja
que eu prepare suas malas?
- Eu
mesmo as preparei hoje bem cedo, obrigada.
Num olhar
de espanto e ironia, Camila comentou:
- Que
interessante... Fazendo suas malas, deve estar ansioso pelo trabalho em São Paulo...
- Estou
sim, bastante.
- E por
que seria? O Jornal tem se tornado um ambiente tão agradável querido?
-
Bastante interessante. Notícias interessantes, local interessante, amigos
interessantes, enfim... Interessante!
- Está
sendo irônico.
-Assim
como você, querida. Agora me dê licença, estou atrasado. – empurrou a cadeira de si avidamente, e
irritado saiu dali.
Camila
parecia um vulcão em erupção, seu relacionamento com Felipe era simplesmente
insuportável, mas parecia que ela o desejava mesmo assim, não pretendendo perde-lo de vista.
Dias se passaram, o trabalho era intenso para
o Jornal e ainda havia o fator adicional de ter se envolvido à AIB, o que a
princípio pareceu-lhe inofensivo, mas a associação na verdade era inflamada por
ideais passionais tão quanto as outras. E lá estava Felipe novamente diante de
passeatas, comícios e confrontos. Muito se falava em nazi-fascismo! A cada dia
os comentários preocupavam e incomodavam Felipe intensamente. Impaciente friccionava o couro cabeludo enquanto se movia ansiosamente, a notícia que ele
mesmo publicava o estava deixando sem controle. Joel bateu na porta de sua sala.
- Entre.
- Tem um
momento?
- Tem
noção de em que lamaçal eu entrei? Olhe para isso! Esse maluco do Plínio Salgado
agora manda que seus adeptos usem roupas verdes com a letra grega sigma como
símbolo da AIB, ainda tem um jargão em tupi pra gritar enquanto eu tomo meu banho matinal.
- Sério?
E como é? - riu Joel da desgraça alheia.
- Anauê!
- Anauê?
E o que significa isso?!
- Eu
ainda não sei, e não ando muito preocupado com isso, o que me preocupa é que
muitos grupos contra a AIB já nos acusam de fascistas.
- Com que
argumento?
- Com
este argumento. – entregou-lhe um
jornal do Rio Grande do Sul.
- Eles
dividem sede com Partido Nazista?! - exclamou Joel enquanto lia rapidamente o jornal.
-
Exatamente. – respirou profundamente, e
após retomar as forças disse olhando o amigo diante dele:
- Não sei
como fui parar aqui Joel, era para estarmos do outro lado. Como acabei um
fascista?
- Ei, não
seja extremo, você sempre aumenta o problema. Não é bem assim, é o que parece,
mas você é um infiltrado.
- Não, eu
era um infiltrado, hoje sou um deles, é bem diferente. Às vezes penso em
besteira sabia?
- Do que
está falando? Que tipo de besteira? Vai dar uma de Santos Dummont
colega? Larga mão de ser moleque e termina o seu serviço chefinho, que eu vou
terminar o meu. E vou descobrir o que significa Anauê. Seu Fascista! - riu trancando a porta.
Mas
Felipe não estava para muitas brincadeiras, realmente aquela notícia o
preocupava, e, sobretudo, o incomodava. Saiu pela tarde resolver assuntos do
Jornal, duas horas após sua ausência, alguém batia na porta transparente da
saleta de Leonardo que dividia com mais dois funcionários. O rapaz levantou-se ao ver que se tratava de
uma bela jovem ruiva, e apressou-se a atendê-la.
- Pois
não senhorita?
- Boa
tarde. Eu me chamo Anice Arruda Carneiro.
- Prazer,
Leonardo Antunes Silva.
- Prazer.
Como ia dizendo, estou à procura de um jornalista...
- Há
vários aqui, eu mesmo serei um em breve.
– interrompeu sorridente.
- Estou
em busca de um específico na verdade, seu nome é Denis Freitas.
- Ah sim!
O chefe do Jornal.
-
Sim.
- Que
pena, ele saiu, e não disse quando voltará na realidade nem mesmo se voltará.
- Posso
deixar esse envelope com você? Entregaria a ele por mim?
- Sim
claro, com certeza.
- Apenas
isso, não esqueça por gentileza, é muito importante.
- De
maneira alguma.
Encantado
Leonardo seguia com o olhar o caminhar de Anice até que ela desapareceu na
esquina do saguão, e quando voltou-se para trás deu de frente ao peito coberto
com o terno cinza de sempre de Joel,
cheirando a charuto.
- Que
susto Joel!
- O que
ela entregou para você?
- É para
o chefe.
- Eu vou
me encontrar com ele e me disse exatamente para levar esta carta, está me esperando. Dá logo isso.
Leonardo
sequer hesitou, entregou e voltou ao seu canto de trabalho. Joel saiu do
recinto onde eles se encontravam e enquanto descia a escadaria do prédio abriu
a carta. Exceto as palavras de amor e carinho, Anice trazia o endereço de onde
se encontrava. Joel transformou aquele envelope em mil pedaços, guardou-os no
bolso do paletó e seguiu ao endereço.
Então dias se passaram. A noite de certa
sexta-feira, no apartamento que seu pai lhe preparara em São Paulo, com todo
luxo, até além de o necessário, Anice estava só. Enquanto escovava seus longos
cabelos e apreciava a lua, se perguntava por que Felipe não havia procurado por
ela, conforme a carta lhe orientava. Não distante dali, estava Felipe, também em uma janela, do quarto do seu
apartamento em São Paulo se questionando se Anice conseguiria ou não vir a
estudar na cidade, ou se teriam que pensar em outro plano, ainda se nenhum
plano seria ideal para eles. E assim, confusos dormiram.
Na manhã
seguinte, o carro de Felipe estacionou em frente ao Jornal, como de costume ele
retirou um cigarro acendeu-o e tomou seu chapéu para descer. Ao abrir a porta
além da poça d´agua avistou os pés delicados a sua frente, e os conheciam muito
bem...
- Você
veio!
- Por que
não foi me ver ontem Felipe?
Ela
tremia diante da garoa fina e fria que caía pela manhã, e a imagem inofensiva e
frágil o fez desmontar em si mesmo. Puxou-a para dentro do carro e saiu de
frente do prédio.
- Quando
chegou?
- Na
verdade há três dias, mas meus pais foram embora há dois, ontem deixei
minha carta com Leonardo, seu funcionário.
- Ele é
um esquecido, o perdoe. Mas terei uma conversa com ele.
- Esperei
você até a madrugada!
- Não
posso acreditar que veio para São Paulo! Então se instalou aqui? Mostre-me o
endereço.
-
Claro. – respondeu beijando-o e
abraçando-o como se não o visse há anos.
Sob o
teto do apartamento da jovem, se perdiam numa cama estreita de menina solteira.
E em meio aos cobertores pesados e roupas dela, brigavam entre eles por espaço
e atenção pelas mãos, pelos braços, por eles...
- Não
consigo trabalhar Anice.
- Nem
pense nisso Felipe, não podem desconfiar de nós!
- Tudo parece ser sempre tão difícil não é?
- Não me
venha com lamúrias de novo, está tudo maravilhoso, você está aqui, eu estou
livre pra ser só sua, quando e quanto você quiser, e isso é o paraíso de tudo o
que pudemos imaginar.
Então o jornalista pacificando seu coração
mais uma vez, como sempre lhe ocorria ao se unir aquela jovem, consentiu a suas
palavras. Colaram-se as mãos, e sentindo como se suas energias fossem
absorvidas um no outro, ele disse:
- Eu
quero me casar com você um dia Anice, ter um filho, viver numa casa simples, com um cachorro e um gato. E quero vê-la de roupas leves me aguardando para jantar. Eu quero tudo diferente do que vivemos ontem e hoje, pois riqueza e luxo, nada disso fez sentido.
Naquele instante em especial, ela deteve as lágrimas, pois não encontrava palavras para exteriorizar o quanto almejava pelos mesmos sonhos. Então preferiu
levar suas mãos aos cabelos dele e trazê-lo para ela pacificamente em silêncio. Naqueles dias, o silêncio era a maior prova de amor de muitos.
O ano de 1933 não trouxe muito tumulto,
diferente do anterior tudo se manteve de certa forma linear,
enquanto o sonho de Felipe e Anice era cultivado e florescia
a cada dia entre encontros secretos no
apartamento da jovem, olhos distantes observavam e
maquinavam contra seus passos...