sexta-feira, 31 de julho de 2015

DITADURA DE CORAÇÕES 
-  Fragmento IV  -


[...]Felipe sequer respirava algo que não fosse o perfume da ruiva garota. Mas aquele romance, de forma iminente, se encontrava com os dias contados. Um dos companheiros de trabalho do rapaz aproximou-se dele e em voz quase inaudível disse sem olhá-lo nos olhos, qualquer movimento naqueles dias haveria de ser vigiado.
- Preciso lhe falar uma coisa, acabo de ouvir do seu tio.
- O que foi?
- Ele comentou de transformar você numa espécie de infiltrado entendeu? Não ouviu isso da minha boca hein! Nego até morrer...
-Não, não entendi nada.  - balbuciou confuso nas palavras.
- Parece que eles estão arrumando a filha de um político, algo desse gênero, também não entendi muito bem. A intenção é que você se aproxime dos tenentistas da Aliança Liberal.
- Espera aí! Está me dizendo que eles estão me arrumando um casamento?! É isso?      - riu debochadamente após a pergunta, não sendo seguido pelo amigo Joel que permaneceu discreto.       
– Obrigada pela discrição Felipe... Isso por que eu disse que é secreto o que estou falando.
- Ei amigo! Acha mesmo que estamos no século passado? Eu não vou me submeter a isso, nem com uma arma na minha cabeça!
- Acontece que assim poderá ter acesso aos militares e suas falcatruas. Sem risco nenhum, depois se separa e pronto. É só uma questão de estratégia, será que não consegue entender?
-E por que não casam você então, por que justamente eu? Querem minha cabeça rolando é isso o que vocês querem? – questionou indignado ao amigo.
- Ei! Não olhe para mim, eu só estou transferindo a informação, e saiba que o escolheram provavelmente por saberem que essa garota já está interessada em você.
- Meu tio enlouqueceu. Não, só pode ser... Eu não vou aceitar isso, é sério nem com uma arma apontada na minha testa! Entendeu bem?
- Não comente nada, ele ainda irá falar com você. Por favor, só contei por sermos amigos.
Felipe ficou mal humorado e parecia não se conter em comentar aquele absurdo.

Dias depois, em um de seus encontros com Anice, estavam eles como de costume sob uma árvore, aquela madrugada estava particularmente fria, era Setembro. A menina deitada com a cabeça no colo de Felipe acariciava sua mão, quando descontente com o silêncio dele mais profundo que o normal, se levantou:
- Por que está tão calado Felipe?
- É algo muito sério, importante e que venho estendendo demais para falar, mas que não estou preparado ainda para lhe contar.
- Você disse que sempre confiaria em mim, mas sempre que precisa contar algo novo teme me falar, não entendo.
- Entenderá quando eu lhe explicar, mas não agora.     
  E não lhe contaria tão cedo... Até aquele ano, muitas decisões já haviam sido tomadas, mas uma em especial foi o estopim para que o Brasil mudasse o rumo de sua história. Desde a década de vinte, a Aliança Café com Leite mantinha entre a elite e os militares, certa relação considerável desde que fossem cumpridos os acordos instituídos entre eles. Este acordo fundamentava-se em; como as eleições presidenciais eram decididas pela oligarquia, qual possuía o poder monetário do país e que se resumia na conhecida Aliança Café com Leite, os presidentes eleitos ou eram mineiros ou paulistas. Foi então, para harmonia entre os estados, acordado que, quando fosse apresentado o candidato a eleição, qual era extremamente diferente da atual, aberta e manipulada, sem acesso as mulheres e analfabetos, esta apresentação fosse através de revezamento. Ora um candidato mineiro, ora paulista. Porém, neste evento em especial, Washington Luís causou frisson ao apresentar após a candidatura de Arthur Bernardes oligarca do café, um também paulista, Júlio Prestes. Isso irritou aos mineiros, pois seria a vez de um oligarca do leite... Esta notícia foi dada em um grande banquete, onde estava presente Getúlio Vargas, que era gaúcho, João Pessoa paraibano, entre outros. Mesmo assim, Vargas se uniu aos demais mineiros e fundou a “Aliança Libertadora” logo após a candidatura de Prestes. Houve nas ruas grande mobilização, não apenas o povo ou a elite não paulista marcava presença, principalmente o conservador  Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, presidente de Minas Gerais, mas também os tenentistas, tidos até então pelos aliancistas como radicais. Tudo era válido para derrubar Prestes, ou quem sabe um sonho ainda maior...?
Mas a chapa de votação, João Pessoa e Vargas perderam para Júlio, e em 1º de Maio, na casa de Arruda Carneiro, os passos irritados do tenentista avisavam que algo não ia bem.


- Aconteceu alguma coisa?    - questionou a doce menina ao notar a impaciência do militar.
Anice não teve resposta, seu pai subiu a escadaria secamente e sua mãe puxou seu braço repreendendo-a: 
- Não fique questionando seu pai, toda vez repete isso, sabe que ele não gosta filha!
- É sobre a eleição? Será que os inimigos do papai ganharam?!   - um instante e o insight... - Prestes!  
O nome de Prestes foi sussurrado, ela o ligou à  Revolução, sua mente mesmo que ainda juvenil, podia ter inteligência o bastante para saber que precisava rever Felipe. Não que o fato tão ínfimo do reencontro diante do que haveria de se sobrepor a eles tivesse algum valor, mas isto Anice e Felipe ainda não imaginavam. Seus pensamentos suaves e de certa forma calmos sofreram uma ruptura pelo som de um vaso que se chocava na parede! A voz grave do pai gritava em alto e bom som:
- Fraude! Isso foi uma fraude!
  Logo após a sua imagem apareceu descendo rapidamente pela escadaria, sempre era seguido por sua esposa tentando acalmá-lo. Anice tremia pela reação nunca tão passional do militar.  
– Tenho que ir ao quartel, isso não pode ficar do jeito que está.
- Mas meu querido, já está feito.    – a voz de Carmem era ofuscada pela fúria do esposo que tomou seu automóvel e partiu dali sem se despedir de ninguém.  Na verdade o que José Arruda queria era localizar Luís Carlos Prestes, achando que ele pudesse ajudar os tenentistas, afinal ele havia liderado a partir da Coluna Prestes no ano de 1925, cerca de dois mil homens! Mas Prestes não aceitou participar do levante, muito pelo contrário, deixou claro que estava contra a Revolução, pois  não confiava em Getúlio. Afirmou que o foco de Vargas não era o futuro do Brasil, e sim, o poder oportunista pela crise do café. Além disso, o que dificultava o envolvimento era o fato de que Luís Carlos Prestes na época nem mesmo se encontrava no país, e sim refugiado em Buenos Aires.


  Os tenentistas se encontraram sozinhos, mas Getúlio não recuou, prosseguiu e paulatinamente todos os interessados a acabar com o PRP, aderiram a ele, enfim, tudo caminhava para uma revolução.
O mês de Outubro traria mais novidades no mundo do pai de Anice, e isso dificultava os encontros entre os amantes, diminuindo a cada dia, até findarem no inicio deste mês.

Dois de Outubro, o falecimento do General Honório de Lemes traria assunto para os jornais e rádio. O que desviaria os olhares do país;  enquanto escolas dispensavam alunos, e comércios fechavam mais cedo, com o pesar do óbito do General, Getúlio Vargas e seus companheiros políticos se aproveitavam da letargia para causar o que eles mesmos intitularam de “O Grande Levante”.



Escritora Tereza Reche.


DITADURA DE CORAÇÕES   
-   Fragmento III  -



 [...]- Preciso ir.
- Por quê Felipe? O que aconteceu?              - Neste exato instante sentiu a mão forte do militar buscando seu braço.    
– Quem era aquele moleque?
- Pai, está me machucando! Apenas um amigo do colégio!
- Amigo do colégio? Mas ele sequer tem sua idade! Quem era ele? Diga agora!                
Carmem correu até eles antes que o marido ferisse o braço da filha, apenas ela tinha o dom de acalmar José Arruda num ataque de ciúmes.  
– Vai machuca-la Arruda! Solte-a!
- Ele entrega jornais pai, apenas isso!  
  Exclamou ela em lágrimas desmanchando-se a correr para dentro da casa, a mãe a seguiu, mas não a alcançou.
E naqueles dias, durante a semana que se completou, não viu mais Felipe Russo... Entretanto, numa noite fria de Agosto, ouviu um barulho que a despertou repentinamente pela madrugada. Uma pedra lançada na janela a fez temer por um instante, mas pela fresta pode ver que havia uma bicicleta recostada em uma grande árvore de frente a sua casa. Abriu vagarosamente a janela evitando assim acordar os pais e empregados e finalmente percebeu se tratar de Felipe. Ele acenava com a mão para que descesse e a menina não receou, rompeu as normas, as ordens e dissipou o medo. Vestiu-se e correu para frente da casa permeando a grama curta do jardim, teve o máximo de cuidado para não ser vista e alcançou por fim o portão baixo que cercava a casa ampla do militar.


- Seu louco! O que está fazendo aqui?
- Vim vê-la, seu pai não pode me conhecer e nem ver meu rosto! Mas precisava ver se estava bem.
- Por que se esconde tanto, por que meu pai não pode te ver? Eu preciso saber, por que foge dele desse jeito. Aliás, acho que ando correndo riscos demais sabendo tão pouco de você Felipe.
- Venha comigo, eu vou explicar.  
Num segundo receou, mas por fim subiu confiante na garupa da bicicleta, Felipe emanava algo que a fazia sentir-se assim. Distantes dali, debaixo de uma grande árvore, sentaram-se. Ela esfregava os braços delicados contra o frio, ele retirou sua blusa entregando-a para que se cobrisse.  
– Obrigada. Mas então; conte-me de uma vez,  quem é você? Por que foge desse jeito quando se refere ao meu pai? Qual o problema com ele?
- Eu vou contar-lhe, mas confiante de que não contaria a ninguém. Nem mesmo à sua mãe...
 - Confie em mim Felipe, somos amigos agora.
- Sou filho de jornalista, não posso lhe dizer o nome do meu pai, é muito perigoso, mas ele apoia Júlio Prestes.
- Meu pai odeia Júlio Prestes! - exclamou instantaneamente.
- Eu sei, por isso estou lhe dizendo, somos conhecidos de João Dantas, se o seu pai souber, ou sequer desconfiar que a filha dele mantém contato com o filho de um jornalista de Júlio Prestes, não sei o que poderia acontecer.
- Meu pai é muito rígido Felipe, intolerante, mas ele me ama demais, não faria mal a você por mim.
- Não creio nisso. Não vindo de militares, sinto muito Anice. Não deveria ser tão confiante também, é muito nova ainda para entender.  - houve silêncio, a menina baixou o semblante como que se preparando para revelar algo iminente.
Então, voltando-se com olhar temeroso disse tomada de uma voz quase inaudível.
- Meu pai não deixa ouvir as conversas dele, não fala sobre trabalho, sempre telefona escondido, mas às vezes eu ouço algumas coisas sim...

Um brilho nos olhos de Felipe nasceu naquele momento, ansioso atentou-se para ela.
-Já ouviu? E o que ouve às vezes?
- Várias coisas... Mas muitas delas eu não me lembro, não agora.
- Eu compreendo, mas, por favor, se ouvir algo muito importante, falaria para mim? Se achar que eu mereço é claro.
- Como algo sobre Guerras, Levantes e Revolução?
- Revolução? Vivemos o tempo todo em revolução.  – sorriu sem retorno dela e houve silêncio entre ambos novamente. Isso chamou a atenção de Felipe que voltou-se novamente ainda mais interessado.
- Poderia ser um pouco mais explícita, por favor?
- É que eu ouvi por acaso certa noite, nas reuniões de sempre que existem em casa foi de uma Revolução, que se daria início no Rio Grande do Sul.
- Você tem certeza disso?
- Absoluta, ouvi meu pai falar.
- Mas... Fale-me mais, ou pelo menos nomes, algo mais detalhado e o restante eu procuro por mim mesmo. Olhe, se eu puder confiar em você, estaremos evitando talvez uma guerra, por que obtendo essas informações, as passo ao meu pai e ao meu tio, isso pode gerar uma forma de livrarmos o país de uma situação pior que a que já vivemos.
- Eu não entendo muito que você fala, mas sei, haverá a Revolução no Rio Grande do Sul. Isso eu tenho certeza, pois o que meu pai diz acontece. Acho que dessa vez ele tem muita certeza de que irá acontecer, pois disse que eu e minha mãe iremos para o Rio de Janeiro.
- Então é real?            – resmungou franzindo o cenho.
Num instante, Felipe viu-se diante de uma fonte de informações valiosa, de outro, da mulher que ele não poderia perder de vista jamais! Ainda comovido com a inocência daquela menina frente a uma situação tão devastadora, Felipe se calou e naquele silêncio em que só os olhos deles falavam agora, se aproximou finalmente após tanto receio vagarosamente beijando-a. Ela não recuou...


O frio não estava mais com eles, Anice sentiu algo bem diferente da situação bizarra que ocorrera no jardim da mansão daquele fatídico jantar militar. Houve paz, nada mais que isso, algo pacífico, acolhedor e viu nele o que jamais imaginaria existir.
E em sua mente distante, Felipe segurando o delicado rosto dela, imaginava como faria agora, que se vira totalmente apaixonado pela filha de um participante da Aliança Liberal, justamente sendo este companheiro de seus inimigos.
Naquela madrugada se iniciava uma relação de cumplicidade, companheirismo e amor, porém, qual jamais seria respeitada nem pela sociedade e nem mesmo pelo destino[...].




Escritora T Reche​.