segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Mais um fragmento do romance histórico publicado em janeiro deste ano pela Editora Perse.
Quem gostar e se interessar em adquiri-lo, basta entrar no site:
www.perse.com.br


O SILÊNCIO DE EULLER
(Fragmento do romance)




[...]No hospital psiquiátrico onde o físico se encontrava, Andrei 
após as festas, retornava para rever seus pacientes. Em seu 
lugar havia estado outro médico que lhe passava os casos, um a um. 
- E quanto ao paciente Kutner? Tem apresentado alguma melhora nestes últimos dias Dr. Fábio? 
- Não, na verdade continua apresentando a postura de 
flexibilidade ceroso de sempre, e agora repete as últimas 
frases que acaba de ouvir. 
- Sim, característico e normal para Esquizofrenia Catatônica. 
Incrível, mas apesar dos medicamentos, ele parece gradualmente progredir em sintomas, e não o inverso. Isso me preocupa. 
- E se envolvêssemos mais os familiares Dr. Andrei? Eu 
estive em um congresso sobre Esquizofrenia há três meses, 
fora discutido exatamente este tópico em mesa redonda, o 
envolvimento da família, de pessoas próximas, para a melhora dos sintomas. 
- Não sei, ele ainda apresenta indícios de psicose, precisamos 
observá-lo mais um pouco.    
  Analisava enquanto percorria com os olhos seu prontuário 
diário. Um som estranho vindo do corredor interrompeu sua 
leitura, e fez com que Dr. Fábio se levantasse surpreso. 
- O que foi isso?!   
  Segundos depois os passos fortes e rápidos dos enfermeiros 
foram ouvidos e passaram pela porta do consultório de 
Andrei, certamente se tratava de algum paciente... 
- Vamos, veio do corredor da direita!   - correram apressados 
seguindo o tumulto, entre vozes e gritos de vários outros 
pacientes, algo soou como um espancar na mesa de ferro. 
Enquanto corriam, logo foi percebido, vinha do quarto de 
Kutner! 
- E depois quer os pais dele aqui?  - questionou Andrei 
enquanto tomava a frente apressando ainda mais os passos. 
Chegando ao quarto, um dos enfermeiros tinha em um dos 
braços um corte profundo, porém, mesmo assim detinha com força Kutner. O físico violentamente gritava para que o 
largassem, pois precisava, segundo ele: - “salvá-la”. 





- Eu preciso salvá-la! Vejam o que estão fazendo com ela meu Deus! Chamem a polícia! Deixem-me salvá-la! Por que não entendem?   - aplicaram imediatamente mais um neuroléptico, para que se acalmasse evitasse mais danos. Muito sangue espalhava-se pelo recinto, porém de Josué o enfermeiro que ao perceber que Kutner se acalmava, deixou-o finalmente. Era um homem forte, negro e extremamente profissional, não deixaria o paciente mesmo esvaindo-se em sangue. Minutos depois, Kutner adormeceu, e mais alguns medicamentos iam sendo administrados para que pudesse ser higienizado, e permanecesse atado nas correias da maca.  
  Duas semanas depois, em uma noite tranquila e quente de 
São Paulo, os jovens estudantes de Medicina tomavam cerveja e falavam da vida em um dos inúmeros pubs que a cidade oferecia. Charlyni preferia outras bebidas, e enquanto a escolhia no cardápio calmamente, Anderson a questionou com ares de quem já havia combinado tal questionamento com a namorada Vera:


- Está pensando em exercer a profissão em um convento 
Charlyni?      - riram-se os amigos com discrição, e ela 
fitando-o respondeu levando aquele comentário na esportiva: 
- Ainda não havia pensado nisso, mas é que minha vida promíscua secreta me impede.   – disse ironicamente tomando sua porção de bebida. 
- Hum... Vida “secreta promíscua”! Até eu fiquei curiosa 
agora.    – ria Vera surpresa com a audácia da resposta da 
amiga. 
- Morrerão de curiosidade meus caros, a intenção é realmente 
passar a imagem de boa moça, e vejo que tenho tido ótimos 
resultados. 
- Você é cruel hein Charlyni! Tenho pena de seu futuro 
esposo, se é que haverá apenas um... Promíscua!    – riu 
também Anderson se rendendo à resposta rápida da jovem. 
Vera se levantou para ir ao toalete, Anderson estava próximo 
de Charlyni então, ela não resistiu e se aproximou do amigo. 
- Se eu lhe pedisse um favor, você me faria? 
- Uau! Essa história de promiscuidade era verdade?! 
- Não seja ridículo, estou falando sério Anderson! 
- Eu também. 
- Me ouça, eu sei que seu pai está tratando de um conhecido 
meu, e eu gostaria de fazer uma visita a ele. 
- Tranquilo, peço ao meu pai, e você vai ao hospital em 
horário de visita. 
- Não! É isso que eu preciso que me ajude, não pode ser em 
horário de visita.  
- Por que não?! O que quer fazer com o seu amiguinho?   - 
maliciosamente riu franzindo o semblante. 
- Anderson, por favor, é sério! Também preciso que consiga 
um estágio pra mim lá. 
- E por que não pede isso diretamente ao meu pai? 
- Por que eu já estudei sobre estágios no setor de psiquiatria, e há uma única vaga a partir do terceiro ano de Medicina, sem vínculo. Como se fosse assistida, e é obvio que seu pai vai ceder à Vera, ela já me disse do interesse. Anderson analisou seriamente agora, coçou o queixo e repensando respondeu: 
- Não sei o que dizer Charlyni, é difícil dizer alguma coisa, é 
minha namorada, e ela também deseja Psiquiatria como você. Por que eu tiraria a vaga dela e entregaria a você?  
  Charlyni não soube responder, então se voltando para ele, 
apenas disse menos entusiasmada: 
- Você tem razão; não haveria o porquê, desculpe-me.  
- Seu pai tem uma clínica particular psiquiátrica Charlyni, e   
que possui mais de cem pacientes! Acha que ele não reservou um estágio completo só para você lá dentro? Fique tranquila, e quanto ao que disse, prometo não comentar com a Vera, por que ela poderia não entender. Para ser sincero, nem eu entendi, mas deve ser por um bom motivo. Quanto à visitinha secreta, depois vejo essa possibilidade com mais carinho.    – amenizou a voz, pois a namorada e mais duas jovens retornavam do toalete.   

Maio, segundo domingo daquele mês... O vento já não tão quente avançava trazendo a cara nova do outono, Charlyni amava o inverno. Roberto mesmo com seu casaco, não perdia a oportunidade de ler seu jornal diário em frente à piscina aos domingos. 

A filha exausta por ter estudado toda a noite biofísica, estava com o semblante deteriorado pelo cansaço, então, antes de dormir finalmente, foi até ele para dar-lhe bom dia. 
- Como vão as matérias minha filha? 
- Legais, acho difícil Bioquímica, mas o restante está 
tranquilo. Adorando Biofísica, não havia me dito que era tão 
emocionante Medicina, me escondeu o ouro hein... 
- Mas você, mesmo assim o descobriu não é? Anda abatida, 
procure montar uma agenda de estudos, desse jeito vai acabar ficando doente. 
- Eu tenho que me acostumar afinal eu terei plantões não 
terei? 
- Sim, terá e muitos. 
- Pai, tire-me uma dúvida, se eu quiser ficar na sua clínica 
psiquiátrica eu posso desde já? 
- “Nossa clínica”, nada de minha, é nossa! E será sua um dia. 
Claro, pode visita-la quando quiser, fazer estudos de caso, 
mas acho cedo demais pra isso. Está no segundo ano filha! 
Engatinhando, há muito que aprender ainda. Uma coisa de 
cada vez, com o tempo aquilo tudo será seu, se quiser dormir 
lá está ao seu dispor. Mas não acho que seja interessante 
misturar as coisas no momento, tenha paciência sim?  
- Mas se eu quiser, como faço para ir até lá entrar quando 
não estiver junto à mim? 
- Eu sempre estou por perto, ou irá lá pela madrugada?! 
Sossegue Charlyni vá dormir, deve estar delirando pelo sono. 
Neurônios enfraquecidos solicitando descanso. Vá!  - riu 
Roberto empurrando-a de perto dele, e ela cedendo ao cansaço realmente saiu dali, e se dirigiu até seu quarto. No consultório de Adolfo Ness, um telefonema inesperado, um homem do outro lado da linha solicitava uma consulta de 
emergência. 
- Eu não tenho cliente amanhã, hoje não poderei atendê-lo, e 
antes de qualquer procedimento preciso de uma entrevista. 
 Do outro lado, o matemático Rogério Muller prosseguia com seus questionamentos: 
- Creio que o senhor não me compreendeu, eu não estou em 
busca de uma terapia ou algo do tipo, apenas gostaria entender melhor, como uma conversa informal, apenas isso. 
- Sim, a maioria inicia minhas terapias desta forma, terminarei provavelmente minha sessão de hoje às três horas da tarde, se puder estar aqui após as cinco horas, poderemos conversar. O que acha? 
- Combinado, estarei neste horário em seu consultório.  – 
desligou pensativo, todo aquele evento dos últimos anos o 
deixavam intrigado, temeroso por Euller. Desejava entender, 
ajudar, tirá-lo daquele inferno, trazer seu amigo de volta de 
alguma forma. Nada melhor que iniciar pelo homem que 
Kutner confiava tanto seus segredos e mistérios, Dr. Adolfo 
Ness. Na sala silenciosa, numa maca simples onde o corpo do paciente Kutner se mantinha após mais três crises de violência repentina, atado pelas mãos, braços, tronco, sem impedir a área do tórax onde se liberava respiração, e cabeça; se encontrava há dias. 




Quando seus olhos reabriam pouco assim permaneciam, pois logo lhe vinha um clarão súbito qual lhe levava a uma tranquila paz imersa de forma artificial, mas o mantinha assim. No entanto, os dias de calmaria eram limitados, e logo um lamaçal de imagens e emaranhados de lembranças estilhaçadas era lançado contra seus pensamentos, arrebatando-o da paz, para a mesma turbulência de sempre! Fora assim naquela tarde, enquanto Ness aguardava a chegada do matemático Rogério em seu consultório. Nas profundezas da mente insana de Euller, algo retorcia nas conchas de seus ouvidos carnais, e também nas visualizadas espiritualmente pelas visões, que após muitos dias, já não mais tinha daquela praia e quietude do mar. O mesmo som repetido das ondas, o mesmo chamar de uma flauta distante, o mesmo desejo gerado no peito a disparar de repente, e nenhum medo agora presente, apenas anseio. 
Corria, contra um vento quente no rosto, o som da flauta mais intensa tornava, viu-se na praia que aquele homem que o guiara e levara, ao ver a casa distante vazia, gritou pelo nome da menina caiçara. Não ouve resposta, apenas melodia...Correu ainda mais até a porta da casa alcançar, e quando seus olhos por si avistaram o interior daquele lugar, um terror  tomou sua alma. 




Não havia chão, e sim um mar de sangue sendo sugado para um centro escurecido, como se lá houvesse, um profundo funesto de algo que lhe remetia medo, e tudo o que ali havia era por ele, tragado! Estático, ouvindo aquele som tão tranquilo da flauta, era contrastante ver aquele oceano carmesim a sugar tudo ali para seu interior obscuro. Foi então que instintivamente tomou uma porção daquele sangue, e uma dor tomou sua alma, era como nele ver a de sua amada dissipada ali. Subitamente sentiu uma mão a tocar seu ombro, levando-o a um  novo sentimento, o de revolta, estremecer-lhe numa onda de ódio e ira. 
O mesmo que sentira quando observara a casa pela última vez, voltou-se para trás já possuído de grande cólera, e pode ver o rosto perfeitamente do empresário de Peruíbe, “Jean Machado”, dono do estabelecimento Imobiliário onde estiveram anos atrás. Reabriu os olhos repentinamente ainda estáticos, sem um movimento sequer, vendo-se com um único enfermeiro ao seu lado, administrando algum medicamento dos tantos que lhe eram administrados, e nada foi dito, nada ocorreu. Apenas silêncio do olhar petrificado no teto e a lembrança petrificada na alma![...]




Escritora Tereza Reche